Christian Gurtner

18 de fev de 20213 min

A Idade das Trevas Digital

Na sala da casa no meio do bosque, a estante cheia de livros era iluminada pela lareira - que espantava também o frio do outono. Os livros eram os mais variados, desde romances de Agatha Christie até tratados filosóficos. Mas além dos livros, havia também cartas trocadas entre o velho e parentes e amigos do passado e fotos. Eram fotos que remontavam três gerações, de 1900, até o ano de 2010.

Mas esse era o ano de 2090, quando uma avalanche vinda dos alpes ao lado do bosque, soterrou a casa enquanto o mundo estava numa grande guerra mundial que aniquilaria boa parte da civilização.

É engraçado pensar que em meio a toda a discussão sobre o aquecimento global, algumas regiões do planeta ficavam gradativamente mais frias e, por isso, a neve que soterrou a casa jamais derreteu.


No ano de 5900, por algum milagre, o ser humano ainda não tinha se autodestruído por completo. Uma equipe num laboratório recebe um alerta automatizado de uma das sondas que, diariamente, tiravam amostras do solo e do ar de toda a parte do planeta para os mais diversos fins. Esse em especial mandava seus dados processados, de uma área coberta por gelo: algo tinha sido encontrado ali.

Pouco tempo depois, uma equipe de arqueólogos, usando equipamentos robóticos e lasers, rapidamente limpam com precisão toda a área, revelando aquela casa de mais de três milênios inacreditavelmente preservada. Por alguma sorte bioquímica que não se sabe explicar, a casa - e todo o seu conteúdo - estava exatamente como no dia em que foi soterrada. Aquilo foi um grande achado para os historiadores que, há muito, tentam saber como foi o século XXI e XXII, e uma casa completa preservada daquele jeito era o santo graal para remontar a história da vida privada dos humanos naquela época.

Mas novamente se deparam com um antigo problema: após analisar todo o material da residência, percebem que não há mais fotos e cartas depois de meados do ano 2000. Boa parte da história da vida privada no século XXI e XXII simplesmente não existia. O que aconteceu?

A resposta provavelmente estava naqueles arcaicos computadores e telefones que os historiadores encontravam por todos os lados, mas depois da tempestade eletromagnética que afligiu o planeta no século XXII, não sobrou muita coisa. Uns poucos que encontraram em condições de leitura, continham dados tão antigos e obsoletos que não puderam ser recuperados. Mas não é só isso....


Os cientistas de hoje afirmam que estamos na iminência de uma "idade das trevas digital", ou um "buraco negro da informação". Isso porque as fotos, livros e "cartas" das pessoas estão 100% na "nuvem" ou em algum HD. Quando um membro dessa geração morrer, toda sua memória e documentos históricos estarão trancados atrás de alguma senha do Google, Apple ou num HD, com grandes chances de que nunca sejam recuperados.

Enquanto os historiadores de hoje se deliciam com cartas trocadas entre personalidades históricas que nos ajudaram a conhecer a história de toda uma época, desde Plínio, o Jovem contando sobre o ocorrido em Pompeia até Einstein debatendo ciência com outras personalidades, os historiadores do futuro não contarão com isso. Os emails e conversas em aplicativos estão protegidos por senha e criptografia.

Além disso, documentos, registros públicos, dados de experimentos e pesquisa, notícias e outra infinidade de conteúdo estão no meio digital, o que com o tempo, se nada for feito, também serão perdidos para sempre: seja por formatos obsoletos ou arquivos corrompidos.

Um exemplo recente disso são os dados da Viking, da NASA, que pousou em Marte em 1976, que não podem mais ser lidos por estarem obsoletos.

Vint Cerf, do Google, chama o século XXI de "Século Perdido". Ele, e várias outras organizações estão na vanguarda para evitar essa Idade das Trevas digital, procurando formas de manter toda nossa informação digital protegida.

E como farão isso com as fotos privadas atrás de senhas na nuvem? Imagina seus nudes e constrangedoras fotos de bebedeira expostos em um museu no ano de 5900?

É engraçado. Mas me faz pensar em como estamos levando nossa vida. Tudo o que você está fazendo te faria sentir orgulho ou passar vergonha caso fosse exposto num museu?

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