Naquela quente tarde de abril entramos na loja de equipamentos outdoor e, ao perceber que o ar-condicionado estava a todo vapor, foi gratificante. Nina, minha cadela, também agradeceu, afinal, com toda aquela pelagem de um Border Collie que deveria estar no frio escocês, não deve ser muito agradável vagar pelas temperaturas tropicais.
A parada na loja foi para comprar um acessório faltante para a trilha que estávamos indo fazer naquele dia - atividade essa que ela sempre amou.
Nina tem doze anos. Alguém me disse, certa vez, que para saber a idade relativa do cão em escala humana, bastava multiplicar a idade do bicho por 7. Ou seja, ela beira os 80 anos de um humano. Mas, vou dizer que, fisicamente, ela ainda mostra força e agilidade - não tanto como quando era jovem, mas também está bem longe de um ser humano de 80 anos.
O problema da Nina é a diabetes, que causou uma catarata que a deixou quase cega. A impressão é que ela enxerga borrões ou tudo muito desfocado e, em casa, se dá muito bem. Mas, nesse dia, um alerta foi levantado quando ela se afastou de mim dentro da loja para cumprimentar todos os presentes (ela sempre faz isso) e, quando eu a chamei, ela atendeu como sempre faz: vem até mim e pula colocando as patas dianteiras em minha barriga para ganhar um afago. Porém, nesse dia, ela não ganhou o afago, pois ela pulou foi no manequim da loja.
Foi, de certa forma, engraçado. Trágico, mas engraçado. Trágico porque, mesmo sabendo de sua condição e percebendo que pequenas coisas ela já não enxergava, como, por exemplo, quando se joga um pedaço de petisco que, antes ela pegava no ar, agora ele bate em sua testa, cai no chão e ela mal percebe, esse dia foi a primeira vez que ela me confundiu.
Seguimos viagem para o início da trilha.
I.
Era a segunda tentativa de realizar aquela aventura. Na primeira enfrentamos um mal tempo que tornou a empreitada perigosa e tivemos que voltar.
O objetivo dessa curta expedição era investigar uma área isolada em meio às montanhas, onde havia pichações com simbologia antiga, num local que parecia ser usado por bruxas e, então, trazer esse artigo para vocês com esse achado.
No entanto, nessa segunda tentativa, o problema foi outro. Uma mineradora, junto com o condomínio próximo a entrada da trilha, fechou o estacionamento usado para quem desejava fazer trilhas na região e impediu a parada de carros durante toda a extensão da rua de paralelepípedos.
Abri o mapa e procurei uma alternativa para entrar na serra e interceptar a trilha por outro ponto. Encontrei. Seguimos para deixar o carro num posto da rodovia e começar essa trilha alternativa.
II.
Como toda trilha pouco usada, essa nova trilha era mais fechada e com um grau de dificuldade maior do que um simples passeio no parque. Nesses casos, a Nina, mais do que companheira de aventuras, era também uma excelente ferramenta. Ela sempre tomava a frente, encontrando buracos perigosos, espantando possíveis cobras no caminho e alertando sobre a presença de qualquer “ameaça” mais à frente. Mas não foi o que aconteceu dessa vez…
III.
Nina me seguiu durante toda a trilha devagar e insegura sobre cada próximo passo. Antes ela era o batedor da aventura e, agora, eu percebia que eu havia me tornado o batedor dela. Muitas vezes ela ficava a alguns passos para trás ou a mata se fechava ao ponto de nos separarmos visualmente em alguns metros ela se perdia, coisa que nunca tinha acontecido também. Eu passei a fazer estalos constantes com os dedos para ela se guiar pelo som nessas situações. Fiquei me perguntando por que ela não estava se guiando pelo meu cheiro. E novamente me lembrei do manequim.
IV.
Chegamos a uma íngreme descida esburacada. Ela percebeu a gravidade da situação para ela. É como se ela soubesse da sua atual limitação e da presença dos buracos, o que a fez descer pata por pata, testando cada pisada antes de continuar e, mesmo assim, ainda caindo em um buraco ou outro.
Não era um trecho propriamente técnico ou de grande dificuldade. Para qualquer humano ou cão com bons olhos era algo simples. Mas não para ela.
Pela primeira vez na vida eu vi aquela cadela que antes não tinha medo de nada, pulava abismos, espantava cobras, vasculhava toda a área como uma exímia batedora e assumia o posto de vigília nos acampamentos em lugares ermos, quase falhar numa simples decida esburacada.
V.
A idade chega para todos. No cão que nos acompanha por anos, podemos ver, como num filme passado rápido, o reflexo de nossas próprias vidas.
Paramos no alto de um morro. Era hora de aceitarmos que aquela aventura era demais para ela. Naquele momento ambos soubemos que aquela era a última trilha que ela estava fazendo.
Nina estava se aposentando.
Não conseguimos chegar ao destino almejado para trazer a história para vocês, mas Nina proporcionou essa narrativa, a história de todos nós, do tempo e da vida.
Nina esteve do meu lado em praticamente todas minhas aventuras. Não só nas trilhas mas, também, nas aventuras da vida, nos melhores e piores momentos. Nas alegrias e nas fossas. E, nessas aventuras, de certa forma, ela ainda me acompanha como um totem estoico. Não importa se estou triste ou feliz, empolgado ou decepcionado, bravo ou calmo… ela sempre vai me tratar como se nada disso importasse. E, talvez, realmente não importa. Para ela, todo dia é um bom dia. Ela não pensa no que está fora de seu controle. Se algo aconteceu no passado ou pode acontecer no futuro, para ela, isso simplesmente não existe.
Nina ainda aproveita a boa vida e certamente ainda lhe restam vários passeios. Trilhas menos simples? Não. Passeios ao livre na natureza? Certamente.
Meu Otto - o idoso, está com 14. Mas por muitos anos pareceu ser o cão mais sênior de todos. Um cão com alma anciã. Não senti o baque de percebê-lo envelhecer. Mas hoje em dia tenho dele mais companhia. Por estar com baixa visão, na maior parte do tempo se tornou minha sombra. Literalmente. A ponto de sempre pisar em alguma parte. E mesmo assim, ele continua. Continua junto, grudado.
Felizes são aqueles que experimentam o amor de um cão.
Que texto bonita e parceria marcante!!! Estou com uma vira lata de 15 anos que era um dínamo e agora economiza energia. Fiquei emocionado.🥹