Divide et impera
Ou como táticas milenares de conquista e controle ainda são usadas, enquanto a sociedade se divide mais ainda através das redes sociais numa pseudo-realidade.
Em sua obra De Bello Gallico, escrita por volta de 52 a.C., Júlio César conta toda sua campanha na Gália. Suas conquistas nessa campanha levaram a fama do então general romano por todos os cantos do império.
O uso do medo foi uma das táticas de César para desestabilizar o moral dos gauleses. Num evento que se tornou um símbolo do avanço e poderio romanos, os gauleses talvez se sentiam protegidos das legiões pelo largo e profundo rio Reno. César, ao chegar às margens do rio, num dos grandes momentos da engenharia romana, construiu uma sólida ponte para atravessar os aproximadamente 250 metros1 do rio com seus 9 metros de profundidade. Tudo isso em apenas dez dias. Aquilo certamente desestabilizou toda a crença dos gauleses. E para acabar de vez com o moral, dizem que Júlio César, quando aquela obra que, para o olhar gaulês, era quase sobrenatural, ficou pronta, ele simplesmente atravessou, pisou no solo do terreno gaulês e voltou, mandando desmontar a ponte2. O recado estava dado: “eu atravesso a hora que eu quiser”.
O cérebro humano pode ser o melhor alvo quando um conquistador o compreende e sabe manipulá-lo. Principalmente quando tratamos de um pensamento coletivo, ou, como se costuma dizer: “a manada”.
Assim, César, ainda em sua campanha na Gália, continuou utilizando de táticas psicológicas para manter suas conquistas. Dentre elas está a mais famosa: Divide et impera (dividir para conquistar). Ele não usou essa expressão diretamente em seus escritos, mas a estratégia foi exatamente essa. Ele se aproveitou das rivalidades e divisões internas que existiam entre as diversas tribos gaulesas para manter o povo em constante conflito entre si, às vezes apoiando um lado e, às vezes, outro. E estimulando a rivalidade. Isso ele deixou bem claro em sua obra:
Ipse Diviciacum Haeduum magnopere cohortatus docet quanto opere rei publicae communisque salutis intersit manus hostium distineri, ne cum tanta multitudine uno tempore confligendum sit
Ou seja, “[…] era importante para a república e para a salvação de todos que as forças inimigas fossem mantidas separadas, para que não fosse preciso lutar contra uma multidão tão grande de uma só vez”.
Um milênio e meio depois, foi a vez de Maquiavel, em sua obra “O Príncipe”, detalhar a importância política de certas táticas:
“Costumavam alguns príncipes, para conservar com segurança o Estado, desarmar seus súditos; alguns outros, manter divididas as terras submissas; alguns, nutrir inimizades contra si mesmos; (...)”
Talvez você reconheça bem essa tática maquiavélica. Porém, essa é a visão pobre de políticos que não se atentam para ameaças externas, pois o próprio Maquiavel afirma que essa tática só funciona em tempo de paz. Em caso de conflito externo, ela se mostraria como fraqueza e seria prejudicial para a nação, já que estaria dividida em caso de investida estrangeira (e hoje em dia a investida não precisa ser, necessariamente, militar para os mesmos efeitos). Bem-vindos ao Brasil.
Na esperança de tempos eternos de paz, temos políticos com técnicas arcaicas de controle e manipulação para a perpetuação no poder e fortalecimento do Estado.
E como voltar a unir uma nação? Talvez seja tarde demais, uma vez que as divisões criadas andam refletindo um cenário global: direita vs esquerda, preto vs branco, pobre vs rico e as religiões. E como golpe fatal para o autofortalecimento das divisões, temos o algoritmo.
A maior fonte de informação e opiniões hoje é a internet: mecanismos de buscas e redes sociais tornam-se a nova realidade. E o que elas entregam ao usuário? Aquilo que o usuário quer ouvir/ler.
As redes filtram de forma direta (pela própria ação da pessoa) ou de forma indireta (identificando as preferências) o conteúdo que é exibido. Se você é de direita, só o conteúdo favorável à direita lhe será entregue. O mesmo para a esquerda. O mesmo para tudo o que você ama e tudo o que você odeia. E é muito interessante olhar por essa ótica do ódio. Se você odeia algo, muitas vezes a rede não só vai filtrar aquilo a favor do que você odeia, como vai te entregar o conteúdo contra aquilo que você odeia.
Dessa forma, estamos vendo o mundo real de forma irreal. As notícias e conteúdos filtrados nos apresentam uma realidade que, apesar de não ser necessariamente falsa, é incompleta, tornando-a irreal. A verdade é relativa - sempre foi - mas nos está sendo entregue como absoluta.
O acesso ao contraditório está cada vez mais difícil e exigindo a busca pelo próprio usuário e, mesmo assim, com certa dificuldade. O debate está se acabando. Hoje ele é exclusividade de certos nichos.
O grito, a violência e a síndrome dos três macacos regem o pensamento contrário. Um exemplo claro são as fortes iniciativas para calar aquilo que chamam de “discurso de ódio”. Ora, é preciso permitir o livre discurso, seja ele qual for. É preciso que ideias absurdas sejam expostas para serem combatidas pelo próprio discurso e, assim, invalidadas. Ao se calar o discurso público, ele não cessará de existir, mas acontecerá entre quatro paredes, exclusivo a grupos que não enfrentarão oposição intelectual e crescerão com cada vez mais força e novos adeptos. Não haverá o contraditório e esse é o maior erro de todos.
A necessidade do pensamento crítico é hoje fundamental para tentar sanar esse problema exponencial. A capacidade para identificar e questionar visões de mundo, principalmente a própria, é a única saída para uma sociedade que está dividida e calada aos berros. Mas, enquanto houver uso político da ignorância (e não vejo um motivo prático para que isso acabe), a sociedade estará caminhando para o colapso.
Estima-se algo entre 140 e 400m de comprimento.
O fato é que ele atravessou com suas legiões, permaneceu por pouco tempo e voltou, desmontando a ponte para mostrar do que era capaz e causar medo no inimigo.




Acho que infelizmente já é tarde demais. O jeito é viver do jeito que dá. Não existe mais pensamento crítico, quer dizer, não existe mais pensamento...